É inevitável imaginar quais teriam sido as consequências de atos do passado de Ravena Carmo, estudante de 27 anos. Se o tiro que disparou em direção a uma mulher tivesse sido fatal, o peso na consciência e as inevitáveis implicações legais a teriam perseguido de maneira ainda mais dura. Outra situação que ainda mexe com a cabeça da jovem é como sua vida seria diferente se o filho Miguel, de cinco anos, tivesse chegado em um momento mais conturbado de sua vida. Ainda assim, nem mesmo as escolhas erradas provocaram um desfecho trágico. Hoje, totalmente diferente do que já foi, Ravena está prestes a se formar em Ciências Naturais na Universidade de Brasília, virou educadora social e fala a adolescentes que passam atualmente o que ela enfrentou dez anos atrás.

Nas ruas da Vila Buritis em Planaltina, onde ainda mora, Ravena enxerga a vida com outros olhos. Antes de cumprir a pena máxima de três anos no antigo Centro de Atendimento Juvenil Especializado (Caje), ela já tinha passagem por falsidade ideológica, porque havia usado documentos falsos, e cumpriu 45 dias já dentro da instituição socioeducativa. A venda de drogas a seduziu pela facilidade e por ganho de autoestima. “No começo da adolescência, eu não tive apoio da minha família e ainda sofria bullying por ser gordinha. Então, de uma certa forma, o crime me seduziu, me empoderou”, resumiu.

A adolescente teve contato com os maiores traficantes de Planaltina. Ela sequer andava armada quando precisou cobrar uma dívida com uma mulher bem mais velha e pediu uma pistola emprestada para fazer o serviço. “Cheguei lá e fui desacreditada por ela, por ser muito jovem, com 14 anos. Ela não achou que eu fosse atirar, mas atirei. Só não morreu porque não era para morrer”, afirma, com expressão de alívio.

Foram três anos no Caje, sentindo-se totalmente desestimulada. “Eu não achava que minha vida ia mudar da forma que mudou”, reconhece. Prestes a completar 18 anos, continuou flertando com as drogas e o crime, como se nada tivesse acontecido. Um dia, decidida, resolveu procurar emprego e passou a ser vendedora em uma loja.

Passou dois anos trabalhando e usou o dinheiro da rescisão do emprego para pagar aulas de reforço e estudar para o vestibular. “O dinheiro acabou e eu não passei na primeira tentativa. Mas aí recorri a videoaulas no Youtube e estudei em casa, com muito empenho”, relembra. O resultado chegou e uma grande surpresa: foi a primeira colocada em Matemática. Mesmo com todas as dificuldades e o filho Miguel, nascido há pouco tempo, a ex-detenta do sistema socioeducativo tinha atingido seu objetivo.

Dentro da universidade, o choque cultural foi inevitável, já que Ravena só tinha cursado até o quarto ano em escolas convencionais. “Chorava no banheiro porque não conseguia acompanhar. Pensei em desistir várias vezes”, admitiu.

Ela seguiu em frente. E em pouco tempo de faculdade, se superou e até se inscreveu em um programa da UnB, para aulas no sistema socioeducativo. Há quatro anos, ela se dedica a passar conhecimento a jovens que ela se enxerga à imagem e semelhança dez anos atrás. “Eles não acreditam em como consegui sair do crime. Quando falo que estive no lugar deles, todos se surpreendem”, conta, orgulhosa.

Com a formatura programada para o ano que vem, Ravena já sonha com o mestrado e o futuro nas salas de aula, como professora. “É uma dívida que eu tenho coma educação”, revelou.

Quando olha para o passado, a estudante tem a certeza de que é uma exceção. “Não acredito em meritocracia e acho que a falta de oportunidade impede muito mais menores infratores de se regenerarem”, ressaltou.

Professor orgulhoso

O maior responsável pela reviravolta na vida de Ravena foi o professor Meiji Ito. Quando tinha aulas de matemática, o potencial da jovem foi descoberto pelo então responsável pelas aulas da disciplina no Caje. “Dizia que ela passaria no vestibular. Ela sequer acreditava. Fiquei um bom tempo sem contato até ser mencionado por ela mesma em uma palestra na UnB. Foi alegria demais”, comemorou.

Professor da Secretaria de Educação há 16 anos, Meiji também dá aulas em uma escola particular e encara os objetivos com similaridade. “O maior trabalho do professor é acreditar que é possível, mesmo nas condições mais difíceis. Ravena é exceção, mas é mais do que possível. Ravena não foi a primeira nem será a última”, garante.

Foto: Myke Sena
Daniel Cardozo - Jornal de Brasília