“A vida dele passou a ser me bater, queimar minha coisas, me ameaçar. Dessa vez passou de todos os limites”, conta vítima, que foi esfaqueada há poucos dias. Foto: Myke Sena

Mulheres são agredidas por querer terminar um relacionamento, por ciúme, por usar roupa considerada inadequada pelo companheiro. Elas são feridas, violentadas, torturadas e mortas – quando o homicídio simples é qualificado como feminicídio. Não se sabe a quantidade exata de vítimas, já que acredita-se na subnotificação por medo. No entanto, por hora, uma média de quase quatro processos de violência doméstica chegou à Justiça do DF no ano passado. Uma rede de proteção tenta prevenir, combater e acolher.

“A relação começa como flor e termina como espinhos”, define uma mulher de 51 anos, que quase foi morta pelo marido há dez dias. No ombro, os pontos que fecham os ferimentos de duas facadas começam a cicatrizar. No peito, a esperança de mudança não existe mais. Ele já havia sido preso por agredi-la e ficou recluso durante quatro meses. A vítima tinha uma medida restritiva em mãos, mas apostou na transformação do algoz. Isso nunca aconteceu.

O casal ficou junto por 11 anos. “A vida dele passou a ser me bater, queimar minha coisas, me ameaçar. Dessa vez passou de todos os limites, tive medo de morrer e eu espero que ele fique preso”, lamenta a mulher, cozinheira profissional que se sustenta vigiando carros no Plano Piloto. Novamente, ele não pode se aproximar e responde preso ao crime de tentativa de feminicídio.

Príncipe virou monstro

Nascida em Planaltina, a vítima estudou até a quarta série. Sabe ler, escrever e construiu uma vida ao lado do “homem maravilhoso”, que depois de um tempo começou a agredir e tornar-se “um monstro bêbado e drogado”. “Os homens não são nossos donos. Dói viver tanto tempo com uma pessoa e ver destruído tudo o que foi construído”, desabafa. A raiva dele era só com ela. “Sinto dó”, diz.

O processo está em andamento e o volume no TJDFT de ações por violência doméstica é grande. São inquéritos policiais, medidas protetivas e incidentes que se tornam problemas judiciais. Até 30 de novembro de 2017, foram distribuídos 29.709 casos, uma média de 89,2 por dia, ou 3,71 por hora.

Ao todo, foram 15.376 inquéritos policiais, 12.781 medidas protetivas e 1.552 incidentes recebidos pelos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do DF. Para complicar o cenário, de janeiro a setembro daquele ano, 10.810 casos de violência doméstica foram registrados – 40 por dia. Quase 670 agressores foram reincidentes e apareceram em duas ou mais ocorrências. Ao todo, 5% das vítimas foram alvo mais de uma vez, em um ciclo de violência que pode levar à morte.

Acidente?

Mas os números reais são desconhecidos por conta da subnotificação. “Culturalmente, não temos estabelecido que são crimes. A qualificação é relativamente recente”, explica Tânia Mara Campos, professora do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB). Ela compara que não há dúvida que assalto é assalto, mas pode faltar clareza em crimes contra mulheres se é ofensa ou brincadeira, se acidente ou proposital.

Além disso, a pós-doutora em Relações Humanas aponta a dificuldade das pessoas entenderem a especificidade do feminino em crimes. “Há minimização porque essa violência é vista como atos corretivos, porque o homem se vê como guardião da boa moral”, afirma.

Vítimas podem contar com rede de proteção

Toda uma rede de proteção tenta prevenir, combater e acolher vítimas de violência na capital. Fazem parte quatro centros especializados em questões do gênero feminino, nove núcleos de atendimento a famílias e aos autores de violência doméstica, a Casa Abrigo, a Casa da Mulher Brasileira, a Unidade Móvel de Atendimento às Mulheres Rurais e do Cerrado, e núcleos de Atendimento à Família e Autores de Violência Doméstica (Nafavd).

“As mulheres são vítimas de violência doméstica familiar em proporção altíssima. O fato de ser mulher traz violações diferentes de outros públicos. Temos uma força de trabalho especializada não só para coibir e erradicar a violência, mas também para promover mudança de olhar, de tratamento social educação em direitos humanos”, afirma Liz-Elainne Mendes, promotora de Justiça e coordenadora do Núcleo de Gênero Pró-Mulher do Ministério Público.

Responsável pelo policiamento ostensivo, a Polícia Militar também tem trabalho específico no tema. No ano passado, fez 7.354 atendimentos pelo Programa de Prevenção Orientada à Violência Doméstica (Provid), uma média de 20 diários. Os casos são tratados como “fenômeno dinâmico e complexo que envolve inúmeros fatores sociais, familiares, psíquicos, culturais, econômicos”.

A corporação constata que um grande problema característico nos casos é a manutenção do relacionamento, apesar das agressões, por ainda acreditarem que o parceiro vai parar de praticar a violência, ou também pelo medo do pior após a denúncia.

Falhas

Apesar dos serviços, a rede também falha e mulheres agredidas chegam à morte. Nesta semana, uma catadora da Estrutural quase foi queimada viva pelo marido; uma balconista sobreviveu a um ataque com régua de puxar cimento no Itapoã; e foi encontrado o corpo carbonizado de uma mulher morta pelo esposo. Em duas semanas, o JBr. noticiou pelo menos dez casos de agressão, homicídio ou tentativa de assassinato.

Saiba mais

A cada dia, 13 mulheres, em média, são assassinadas no Brasil. Segundo o Mapa da Violência 2015, dos 4.762 assassinatos de mulheres registrados em 2013 no Brasil, 50,3% foram cometidos por familiares, sendo que, em 33,2% destes casos, o crime foi praticado pelo parceiro ou ex.

A Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência (Disque 180) e o disque direitos humanos da mulher (156 opção 6) recebem denúncias de violência, reclamações sobre os serviços da rede de atendimento e orientam as mulheres sobre direitos e a legislação.

JBr