Norma foi vetada pelo governador Rollemberg, mas mantida pela Câmara Legislativa. Projeto prevê rede de apoio financeiro e psicológico em casos de estupro e gravidez indesejada.

Por Luiza Garonce, G1 DF

Ativista pró-vida segura modelo de um embrião de 12 semanas de idade, durante um protesto em Belfast, na Irlanda. (Foto: Cathal McNaughton/ Reuters)

Uma nova lei distrital estabelece diretrizes para a criação de um programa de prevenção ao aborto e abandono de incapaz em Brasília. Aprovada pela Câmara Legislativa, que contrariou veto do governador Rodrigo Rollemberg, a norma foi publicada no Diário Oficial do DF nesta segunda-feira (29) e inclui regras para administração de casas de apoio à vida.
A lei define políticas de apoio financeiro e psicológico a mulheres que tenham engravidado após estupro ou cuja gestação seja indesejada ou acidental e "não disponham de meios e apoio para uma gestação segura".

Segundo a Casa Civil, a proposta "possui vício de inconstitucionalidade formal por legislar sobre competências privativas ao chefe do executivo local" – ou seja, interfere diretamente na gestão das políticas de assistência e proteção à saúde.

A pasta informou ao G1 que a Procuradoria-Geral do DF pode entrar com recurso para pedir a revogação da lei caso haja inconstitucionalidade na norma.

Lei distrital cria diretrizes para programa de prevenção ao aborto em Brasília (Foto: Thaís Leocádio/G1)

Entre as diretrizes do projeto estão o oferecimento gratuito de pré-natal, assistência social e psicológica até o puerpério – período pós-parto, cerca de dois meses após o nascimento do bebê; e programas de assistência e geração de renda “até [que a mãe] consiga suprir as necessidades da família”.

Quando for da vontade da gestante, a Defensoria Pública deve orientá-la e encaminhar o bebê para os procedimentos de adoção. Também deve ser criada uma "rede de atendimento à saúde da mulher" de forma direta ou em convênio com o governo.

A lei também concede à mãe o direito de registrar o bebê ainda na maternidade – direito que já estava assegurado em todo país pela Medida Provisória nº 776, aprovada em abril. Nos casos em que a mãe tiver outros filhos em idade escolar, as casas de apoio à vida devem cadastrá-los na rede pública de ensino.

Para a advogada e pesquisadora do Instituto de Bioética Anis Gabriela Rondon o ponto mais grave da “lei de prevenção do aborto” é incluir expressamente as mulheres vítimas de violência sexual – que têm direito ao aborto legal – em um programa que tem como principal objetivo evitar a interrupção da gravidez.

“O Estado não deve ter por objetivo prevenir o aborto nessas condições. Especialmente nos casos de estupro, a mulher tem que ser informada e ter condições de tomar a decisão que achar mais adequada.”

“Nenhum dos artigos faz menção ao fato de que [elas] devem ser informadas sobre o direito [de abortar].”

Manfiestantes caminharam pelo Eixo Monumental com bandeira do Brasil com os dizeres Brasil sem aborto e Brasil sem drogas (Foto: Pedro Borges/G1)

O distrital Rafael Prudente, autor da proposta, explicou ao G1 que a lei não é uma “permissão ou proibição ao aborto”, mas um instrumento para que essas mulheres “tenham condições de levar a gravidez adiante”.

“É para que o governo crie uma estrutura de amparo para explicar os direitos da mãe, com assistentes sociais e psicólogos para saber se é isso mesmo que ela quer”, afirma o deputado.

Segundo ele, muitas mães acabam abortando por serem “mal informadas”. Com a norma, Prudente espera que essas mulheres recebam orientações e atendimento especializado que, conforme o parlamentar, não são oferecidos de forma adequada no DF.

“Em que lugar essa mulher é orientada? Hoje o atendimento é precário e praticamente não existe. O DF todo tem só uma delegacia da mulher."

Segundo a Secretaria de Saúde, o DF conta com o Programa de Interrupção Gestacional Previsto em Lei, que segue diretrizes do Ministério da Saúde. As vítimas são encaminhadas para o Hospital Materno Infantil de Brasília (Hmib), onde recebem atendimento especializado de uma equipe multidisciplinar – formada por médicos, enfermeiros, psicólogos e assistentes sociais.

A advogada Gabriela afirma que lei passa a “falsa impressão” de que garante políticas de assistência que não existiam antes. “Não tem nada de novo. São políticas previstas em outros instrumentos, em normativas técnicas do Ministério da Saúde."

"É claro que [uma mulher grávida após estupro] precisa de assistência psicológica e social. E, claro, o aborto legal deve ser tratado como uma opção.”

Ativista participa de ato em favor da legalização do aborto no Dia da Mulher (Foto: André Penner/AP)

Para a integrante do Centro de Estudos Feministas e Assessoria (Cfemea) Jolúzia Batista, a norma tem conotação de “promover um preceito moral conservador” ao tratar a mulher somente na dimensão da maternidade e “não como ser autônomo”.

Segundo ela, com pretensão de ser preventivas, as diretrizes para o programa estão no final do processo de amparo à mulher, que deveria começar com educação sexual e orientação contra abusos intrafamiliares ainda na escola.

“As arestas estão todas abertas. [A lei] não contempla a integralidade da vida da mulher.”

Em um vídeo explicativo sobre as intenções do projeto divulgado na internet, a pesquisadora da Anis e professora da Universidade de Brasília (UnB) Débora Diniz afirma que um programa de prevenção ao aborto é "um serviço quase missionário de convencimento de que o aborto seja uma maldição."

Ela defende que mulheres vítimas de violências sejam aconselhadas sobre a possibilidade de aborto, alternativas para a manter a gestação e processos de adoção. "Um dos principícios do aconselhamento é a neutralidade e a palavra que está no projeto de lei [aprovado pela Câmara] é a prevenção."

Aborto no Brasil

De acordo com a Pesquisa Nacional do Aborto, realizada em 2010 pelo Instituito de Bioética Anis, uma em cada cinco brasileiras com até 40 anos de idade fez, ao menos, um aborto. A maioria (61%) tem entre 18 e 29 anos e recorre à clandestinidade. Cerca de metade dessas mulheres acaba em hospitais com complicações ou para fazer a curetagem – procedimento de esvaziamento intrauterino.


De acordo com o Ministério da Saúde, em 2014 foram registrados 178 mil procedimentos de curetagem e 1.557 de aborto. Em 2015, foram 182 mil curetagens e 1.667 abortos. No ano passado, foram 1.678 abortos e 172 mil curetagens.

Ainda segundo o levantamento, o aborto ilegal mata uma mulher a cada dois dias no Brasil e chega a um milhão de procedimentos fora da lei por ano. "Os níveis de internação pós-aborto são elevados e colocam o aborto como um problema de saúde pública no Brasil", afirma a pesquisa.

O trabalho foi realizado por Débora Diniz, pesquisadora do Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis) e uma das autoras da ação assinada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde que pediu a legalização do aborto para os casos de anencefalia fetal ainda em 2004, e por Marcelo Medeiros, pesquisador da Universidade de Brasília.

Legislação atual

De acordo com o Código de Processo Penal Brasileiro, o aborto por livre escolha da gestante é considerado crime. A pena vai de um a três anos de prisão para a mulher que fizer aborto em si mesma e de até quatro anos para quem fizer o procedimento na gestante maior de idade. A interrupção da gravidez é permitida somente em casos de estupro e de risco de morte da mãe.

Há cinco anos, o Supremo Tribunal Federal decidiu que também é permitido abortar quando o bebê é anencéfalo – não tem cérebro. Uma decisão que demorou oito anos para ser tomada desde que foi proposta, em 2004, pela Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 54.

De acordo com o Serviço de Aborto Legal no Brasil, entre 2013 e 2015, mais de 90% dos abortos realizados dentro da lei foram escolhas de mulheres que engravidaram após terem sido estupradas. Os casos de anencefalia do feto correspondem a 5% e risco de morte à gestante, a 1%.

Ideia legislativa

No site do Senado, está sob consulta pública um projeto de ideia legislativa que propõe a legalização do aborto por livre escolha da gestante durante as primeiras 12 semanas de gravidez. A Ideia nº 29.984 foi sugerida por meio do portal e-Cidadania e está parado na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) desde dezembro do ano passado. Esta é a primeira etapa de deliberação legislativa sobre sugestões feitas por cidadãos. Caso a proposta seja aprovada, será transformada em um projeto de lei.

Nesta segunda (28), 207 mil pessoas haviam votado a favor do projeto e 196 mil conta – o placar, no entanto, não significa a efetivação da ideia. Na prática, a consulta serve para amparar a decisão dos senadores, que tomam conhecimento da aceitação popular.


Projeto de ideia legislativa sobre regularização do aborto voluntário no Brasil está sob pública no site do Senado Federal (Foto: Portal e-Cidadania/Reprodução)

"A gestante terá um período de reflexão de cinco dias, após o qual, se ratificado que deseja terminar sua gravidez, um médico ginecologista realizará o procedimento imediatamente", expõe o proponente.

A proposta também prevê que uma equipe de saúde interdisciplinar ofereça apoio psicológico e social à gestante para "ajudá-la a superar as causas que induziram ao aborto e para garantir que ela possua todas as informações necessárias para tomar uma decisão consciente e responsável".

A gestante também deverá ser informada sobre os riscos do procedimento e sobre alternativas à interrupção da gravidez, como "programas sociais de apoio financeiro e a possibilidade de oferecer a criança à adoção", diz o texto. Essas pré-disposições podem ser modificadas caso o projeto de ideia se torne um projeto de lei.

A proposta foi sugerida por André de Oliveira Kiepper por meio do portal e-Cidadania, uma plataforma de interação do Senado Federal com a sociedade que permite – além de garantir o acesso a documentos e outros serviços de transparência – a sugestão de ideias que tenham a relevância necessária para serem transformadas em lei. Ele disse ao G1 que se embasou em legislações internacionais acerca da questão.

"Usei principalmente a lei uruguaia de 2012 como modelo."

Segundo Kiepper, a ideia surgiu após a repercussão do caso Jandira dos Santos, em 2014. A mulher de 27 anos foi encontrada morta um dia depois de ir a uma clínica clandestina de aborto no Rio de Janeiro. O caso foi registrado como homicídio em 26 de agosto daquele ano. Jandira era mãe de duas crianças e estava no quarto mês de gestação quando foi à clínica. O corpo foi encontrado mutilado e carbonizado dentro de um carro em Guaratiba, na zona oeste do Rio.

Nos países vizinhos

De acordo com o Centro de Direitos Reprodutivos – organização norte-americana que difunde mecanismos legais de garantia dos direitos sexuais e reprodutivos no mundo –, somente três países na América Latina lagalizam o aborto em quaisquer circunstâncias, considerando período mínimo de 8 a 12 semanas de gestação. São eles a Guiana, a Guiana Francesa e o Uruguai, cuja lei é de 2012.

O Brasil, a Venezuela, o Paraguai e o Chile são os únicos que têm legislação ainda mais restritiva – a maioria autoriza o procedimento somente em caso de risco à vida da gestante. No Chile, a proibição do aborto é máxima. "Não poderá ser executada nenhuma ação cujo fim seja provocar um aborto", diz um decreto de 1967 que tem força de lei. O código penal, que tipifica as penalidades, é do século XIX.

Outros seis países aceitam o aborto em casos de estupro e risco à saúde da mulher. No Equador, a lei é de 1971 e autoriza o procedimento apenas quando a mulher corre risco de morrer e não há outra alternativa, e quando a gravidez é resultante de um estupro, mas apenas se a vítima tiver "debilidade mental".

A norma também prevê algo inusitado: "Quando o aborto tiver sido causado por violências feitas voluntariamente mas sem intenção de cometê-las, o culpado será reprimido com prisão de seis meses a dois anos". No Brasil, a variante "sem intenção" não vale para os casos de estupro.

No Peru, a lei que trata sobre aborto é de 1991 e permite o procedimento quando a gravidez apresenta risco de morte ou de complicações graves e permanentes à mulher, desde que dentro do período de 22 semanas de gravidez.

Nos casos de possível malformação do feto e "quando a gravidez for consequência de violação sexual fora do casamento ou inseminação artificial não consentida e ocorrida fora do casamento, sempre que os atos tiverem sido denunciados ou investigados", o aborto pode levar a até três meses de prisão. No Brasil, a violência sexual praticada pelo parceiro da vítima também é considerada estupro.