Brasília(DF), 13/09/2017 - Tia Tatá - ela tem uma creche que cuida de 52 crianças na estrutural.
Foto: Rafaela Felicciano/Metrópoles

Tia Tatá fica com as crianças de mães solteiras e catadoras do lixão durante o dia e não cobra um centavo: o projeto vive de doações

Há dez anos, ao descobrir um câncer de útero já em estado avançado, Maria da Conceição Ferreira, muito religiosa e frequentadora assídua da Assembleia de Deus, fez uma promessa. Se sobrevivesse à doença, se dedicaria a ajudar mães solteiras e carentes que precisam de alguém para cuidar dos filhos enquanto trabalham. Viveu. Retirou o útero e os ovários. “Já não tenho mais nada, dentro de mim só fígado e tripas”, conta.

Levou a vida tentando encontrar o momento ideal para começar a cumprir a promessa. E como as coisas nunca acontecem uma de cada vez, outra reviravolta a obrigou a ajudar o outro. Sua filha mais nova, com 19 anos, sentiu dores, estava com apendicite e do hospital saiu direto para o cemitério. Sofreu um choque anafilático, tinha alergia à anestesia.

Nas bordas da depressão, prestes a cair no buraco, ainda viu terminar o casamento de 25 anos com o homem que não era o pai biológico, mas que criou seus quatro filhos. Ele queria as próprias crianças, mas ela, sem útero, não podia atender o desejo do marido. Ele queria engravidar alguém para ela criar o pequeno. Maria da Conceição não aceitou, terminou tudo, pegou suas coisas, fechou a casa, jogou a chave por cima do portão e comprou uma passagem para sua cidade, Campo Maior, no Piauí. Ficou por lá um ano lambendo as feridas, mas resolveu voltar.

Há três anos, está na Estrutural, na casa de uma amiga. Em Santa Luzia, mais especificamente, uma área muito pobre dentro de uma cidade que já precisa de ajuda. Lá, conheceu a vida das mulheres que vivem do lixão e decidiu: era hora de colocar o plano em prática. Se mudou para o próprio barraco e encontrou algumas mulheres necessitadas de ajuda. Mães solteiras, algumas usuárias de drogas. Aí virou Tia Tatá.

A notícia correu rápido: não é todo dia que aparece uma pessoa disposta a cuidar das crianças de graça enquanto os pais trabalham. E os seis meninos viraram 20, 30, 40. A casa ficou apertada. Alugou outro barraco próximo, chamou algumas vizinhas para ajudar. Tudo muito simples: o proprietário do espaço não deixou nem colocar piso no chão. As paredes são de madeirite. Tia Tatá tirou as telhas da própria casa e colocou em cima das cabeças dos pequenos durante a época de chuva. Vendeu o carro, pagou as despesas e hoje anda de moto.

O trabalho dela é importante: além de olhar os meninos, em vários casos é só ali que eles têm alimento. Antes de começar a organizar um jantar, às 16h, recebia crianças quase desmaiando de fome de manhã por terem comido pela última vez no almoço do dia anterior. Algumas vivem em lares completamente desestabilizados, convivem desde pequenos com a violência extrema. Ali recebem cuidado, carinho, banho e comida. Eles têm entre um a oito anos, e Tia Tatá faz questão de levar os maiores para a escola todos os dias. “São uns abençoados”, diz.

Depois de um evento da Patamo em uma área próxima à casa de Maria da Conceição, uma rede de televisão a descobriu e algumas pessoas começaram a enviar doações. E hoje, o projeto vive única e exclusivamente de solidariedade. “Deus provê. Às vezes, nem durmo à noite pensando no que eu vou dar para essas crianças comerem no dia seguinte, como vou pagar as pessoas. Aí aparece alguém disposta a ajudar”, conta.




Tia Tatá vendeu o carro para ajudar com as despesas. Hoje, se locomove com uma motocicletaRafaela Felicciano/Metrópoles
2/6O projeto começou com poucas crianças e hoje atende 52. Tia Tatá dá preferência a filhos de mães solteiras e que trabalham no lixãoRafaela Felicciano/Metrópoles
3/6As crianças estão em um local provisório, enquanto a casa que está em construção não fica prontaRafaela Felicciano/Metrópoles



As crianças ficam em um barraco alugado na área de Santa Luzia, na EstruturalRafaela Felicciano/Metrópoles
5/6Tia Tatá é sobrevivente de um câncer avançado no ovário. Mesmo com toda a confusão, ela se diz felizRafaela Felicciano/Metrópoles

No final do mês, ela inaugura uma casa com estrutura para receber as crianças
Rafaela Felicciano/Metrópoles

E as doações são complicadas. A maioria das pessoas doa alimentos não perecíveis, que são importantes, mas falta carne e frutas. As roupas vão para as crianças e as de adulto se transformam em um bazar mensal. O lucro paga o aluguel e as vizinhas ajudam. E, pela localização, de vez em quando alguém chega às portas do bairro Santa Luzia e desiste de doar, tem medo de entrar com o carro nas ruas de terra. Não há nada fixo, não é possível esperar com certeza que a ajuda venha.

Há até seis meses atrás, Maria da Conceição não aceitava doações em dinheiro. “Tenho medo de Deus me castigar”, explica. Mas entendeu que, às vezes, as pessoas querem participar do projeto mas não têm tempo de ir ao mercado, de levar as doações até a porta de sua casa. Embora ainda prefira dar uma lista de compras, já aceita passar a própria conta bancária.

Ela se casou de novo, com um homem trabalhador. O cunhado prometeu ajudar a recolher as doações. Recebeu materiais de construção de algumas pessoas e se colocou a reformar a própria casa para receber as crianças com maior estrutura, com paredes de tijolo e piso de alvenaria. A expectativa é levar os 52 pequenos para a casa nova no final de setembro e, quem sabe, aceitar mais 10.

“MEU SONHO É SÓ MELHORAR. EU QUERIA UMA PROFESSORA DE VERDADE, UMA PSICÓLOGA PARA CUIDAR DOS MENINOS. MEU NEGÓCIO É ALIMENTAÇÃO PARA AS CRIANÇAS, MANTER O PÃO DELES. O DESEJO MAIOR É EDUCAÇÃO, COMIDA, TER UM ESPAÇO BOM COM CHÃO LIMPINHO. MEU SONHO É VER ELES SAINDO DE CASA ARRUMADINHOS E LIMPINHOS. MAS A VONTADE DE DEUS SERÁ FEITA”, EXPLICA. ASSIM QUE AS PORTAS DA NOVA CASA SE ABRIREM, MARIA DA CONCEIÇÃO ESPERA CONSEGUIR REGULARIZAR O LOCAL COMO UMA ONG, CRIAR UM CNPJ.

“Eu sou simples. Não conheço a Água Mineral, Parque da Cidade. Até um dia desses não sabia o que era hambúrguer. Mas posso dizer: sou feliz desse jeito, mesmo nessa confusão. Vou levando devagarzinho. Onde eu puder ajudar, quero ajudar. E onde não puder, não atrapalhar.”

Quem quiser ajudar a Tia Tatá pode entrar em contato pelo telefone (61) 99648-3772.

Fonte: Metropoles