Estudante teve a autodeclaração racial negada por banca; ao G1, ela disse que lei 'tem brechas'. Fundação vai republicar resultado mas diz que, mesmo assim, nota não deve gerar nomeação.

Por Mateus Rodrigues, G1 DF

Estudante faz prova, em imagem de arquivo (Foto: Divulgação)

Uma moradora do Distrito Federal ganhou, na Justiça, o direito de ser considerada "parda" e disputar um concurso público pelo sistema de cotas. Vasti Gomes teve a autodeclaração rejeitada pela banca avaliadora, mas recorreu à própria banca e, depois, à Justiça do Trabalho. Segundo o juiz, os critérios usados na avaliação não foram claros o suficiente.

Ao G1, o Cebraspe – que organizou a seleção – e a Fundação de Previdência Complementar do Judiciário Federal (Funpresp-Jud) – onde as vagas foram abertas – informaram que vão cumprir a decisão. A nova classificação deve ser publicada no Diário Oficial da União (DOU) na próxima semana.

Segundo o diretor de administração da Funpresp-Jud, Márcio Medeiros, a alteração não deve ter efeito prático, já que o 5º lugar entre os cotistas – alcançado pela candidata de 40 anos – não deve ser suficiente para garantir uma nomeação.

"A possibilidade é de 0,0001%. O nosso planejamento prevê chamarmos seis pessoas do total até 2020. Seriam quatro da concorrência geral, um das cotas raciais e um das cotas de deficiência. Como somos afetados pela política fiscal do governo, é possível que chamemos ainda menos pessoas", afirmou.

"Teria que haver uma retomada econômica muito inesperada, que nos permitisse chamar tantos candidatos assim. Na verdade, o custo para o nosso jurídico não compensa a apresentação de recurso."

Porcentagem de cada cor/raça na população brasileira, segundo a Pnad 2014/2015 (Foto: Arte/G1)

estão moral'

Vasti Gomes conversou com o G1 por telefone, nesta sexta, e afirmou que recorreu por uma "questão moral", embora ainda tenha esperanças de ser convocada para o cargo. Ela afirma que sempre se considerou parda mas, por muito tempo, teve medo de se inscrever no sistema de cotas por saber que poderia ser alvo de "critérios diferentes".

"Quando eu vi o resultado, cresceu em mim um sentimento de revolta. Não de revolta. Eu cumpri todo o edital, todos os atos que eles previram".

Formada em gestão pública e estudante de direito, Vasti diz que considera a lei 12.990/2014, que prevê a reserva de 20% das vagas em concursos públicos para negros, "malfeita, omissa e falha".

"Se a lei fala que é autodeclaratório, então, é autodeclaratório. Ela não diz que o negro é esse ou aquele, não especifica. Se o legislador criou uma lei dizendo que eu posso participar, por que eu, uma pessoa que lutou a vida inteira, não vou usar um dispositivo que é favorável a mim?", questiona.

Ao longo da entrevista ao G1, Vasti afirmou que é filha de mãe negra com pai branco, e que é "a mais escura dos irmãos". Também citou uma filha negra, a quem ensina a "nunca se sentir diminuída". A candidata chegou a dizer que enviaria fotos da família, mas voltou atrás, e pediu para não ter o rosto publicado para evitar perguntas e exposição excessiva.

"Na escola, entre eu e uma menininha loira e de olho claro, os professores iam escolher aquela pessoa, e não eu. Sofri preconceito por ser parda, por ser baixa, todo mundo sofre preconceito. A vida inteira, lutei para ter minhas coisas. Eu escovo, mas meu cabelo é anelado, já sofri discriminação por tudo isso", enumera.

Banca examinadora

A criação de uma banca avaliativa para conferir a declaração de candidatos pretos e pardos não está prevista claramente na lei. O texto sancionado em 2014 fala na "hipótese de contestação da declaração falsa", e prevê procedimento administrativo com "contraditório e ampla defesa" para o candidato sob suspeita. A fraude pode ser punida com eliminação do concurso e anulação da posse.

Presidente Dilma Rousseff com lideranças e personalidades negras na sanção da lei de cotas em concursos, em 2014 (Foto: Roberto Stuckert Filho/PR)

Segundo a Funpresp-Jud, todos os candidatos desse concurso que se declararam pardos e pretos passaram pela banca, independentemente da classificação na prova. O procedimento, diz o órgão, seguiu recomendação do Ministério Público Federal (MPF).

Na banca, havia dois membros do Cebraspe e um da própria Funpresp – a raça e a cor dessas pessoas não foram informadas. O edital previa eliminação apenas quando os três avaliadores fossem unânimes ao rejeitar a declaração, o que aconteceu no caso levado à Justiça.

Vasti afirma que já sabia da necessidade desse procedimento quando fez a inscrição, e não viu problema em passar pela avaliação. "Foi muito simples, perguntaram se eu me considerava negra, e eu disse que sim. Não foi nenhum constrangimento, não teria problemas em passar por isso de novo", diz.

"Mas eu senti que, pela forma como eles se referiram, eles não me consideravam negra, nem parda, nem nada."

Márcio Medeiros diz que acompanhou, como ouvinte, a banca examinadora que avaliou as declarações de candidatos inscritos como pretos e pardos – termos incluídos na Lei de Cotas a partir da classificação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Ele afirma que todo o processo foi tranquilo, e que vê a candidata envolvida nesse processo como "branca".

"Há muitos candidatos que têm pais negros, mas não são negros nem pardos. Há previsão de recurso no edital, a banca é gravada, o processo é bem organizado. Quando o candidato é negado nas cotas, ele sai do concurso inteiro, até da classificação geral. Com a decisão, vamos recolocar o nome dela nas duas listas", explicou o diretor ao G1.

'Todos são cotistas'

A decisão que devolveu Vasti Gomes ao concurso é assinada pelo juiz Francisco Luciano Frota, da 3ª Vara do Trabalho de Brasília. Na sentença, o magistrado não discute se a concurseira é branca, parda ou preta, e diz que a criação de uma banca avaliadora é legítima, constitucional e avalizada pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

O problema, segundo Frota, é que a justificativa apresentada pela banca foi insuficiente, porque levou em conta apenas a aparência de Vasti. De acordo com o magistrado, isso "frustrou o exercício amplo do contraditório e da ampla defesa", além de comprometer a impessoalidade e a transparência do serviço público.

"Além do exame visual, outros critérios complementares precisam ser averiguados para escapar o máximo possível do subjetivismo, como, por exemplo, análises antropológicas e/ou pesquisas em banco de dados de identificação do candidato perante órgãos públicos, etc."

O advogado de Vasti no processo, Max Kolbe, diz considerar que "todos [os brasileiros] somos miscigenados", e que as tentativas de distinguir pessoas pelos traços físicos são erradas.

"A Vasti é parda da mesma forma que você, Mateus, é pardo. Eu nem te conheço pessoalmente, mas posso afirmar isso com certeza, pela miscigenação no país."

Segundo ele, a lei federal não define o uso do "fenótipo" (características físicas, visíveis) em detrimento do "genótipo" (a carga genética). Kolbe diz que a adoção do termo "pardo" inviabiliza um uso justo da lei, e afirma defender cotas com critério socioeconômico – que já existem para outras seleções, mas não para os concursos públicos.

Critérios

Em um texto publicado em novembro de 2003 – pouco antes das primeiras cotas raciais serem adotadas no país –, o pesquisador do Ipea Rafael Guerreiro Osório analisou o sistema de cor e raça usado pelo IBGE.

Segundo o relatório da pesquisa, a reivindicação de critérios mais precisos e objetivos é "insustentável", e a imprecisão dos termos "branco", "pardo" e "preto" reflete a imprecisão da sociedade quanto ao tema racial.

"A sociedade não precisa saber quão negra é uma pessoa ou o são seus ancestrais, basta saber se, em seu contexto relacional, sua aparência a torna passível de ser enquadrada nessa categoria para considerá-la uma vítima potencial de discriminações, diretas ou estruturais", diz o relatório.

"Nunca se teve notícia de um porteiro de prédio que exigisse um laudo técnico ou um microscópio eletrônico para decidir mandar o sujeito que considerou mais escuro entrar pela entrada de serviço."