Depósito tem previsão de fechamento neste mês; 2 mil catadores utilizam recicláveis como fonte de renda. O G1 foi ao local ouvir trabalhadores, governo e ambientalistas.

Por Marília Marques, G1 DF

Lixão da Estrutural: um retrato do maior depósito de lixo da América Latina

Montanhas de lixo com até 55 metros de altura compõem o cenário do lixão da Estrutural, o maior da América Latina. Pelo menos duas mil famílias sobrevivem desses rejeitos que são descartados, irregularmente, em um local há 20 quilômetros da Praça dos Três Poderes, centro político do país.

O cenário está prestes a mudar. Em processo de desativação, o local será substituído pelo Aterro Sanitário de Brasília, em Samambaia. O anúncio de encerramento das atividades do lixão – adiado por três vezes – foi remarcado para o próximo dia 20. A vida útil estimada do novo depósito, no entanto, é de 13 anos. Após uma década, um novo local poderá ser construído.

Para ouvir todos os lados dos envolvidos no processo, o G1 foi até o lixão e conversou com catadores, que sobrevivem da coleta de materiais recicláveis, e com os chamados atravessadores, que intermedeiam a revenda. Os entrevistados atuam no local há mais de 10 anos e todos disseram querer permanecer na atividade.

A reportagem ouviu a direção do Serviço de Limpeza Urbana (SLU), que administra o local, além de ambientalistas e outros catadores que já trocaram o dia a dia no lixão pelo trabalho em galpões do GDF.

Cenário

Quem passa pelo local pela primeira vez se impressiona. O lixão da Estrutural é grandioso, ocupa 200 hectares de área e faz limite com o Parque Nacional de Brasília. Caminhões, animais e 2 mil catadores – assim como algumas crianças flagradas pelo G1– disputam o espaço em meio ao lixo.

O local está ativo desde a década de 1950, é irregular, mas foi oficializado pelo GDF há quase 40 anos. O lixão recebe 2,2 mil toneladas de rejeitos de domicílios ao dia e pelo menos 5 mil toneladas de entulho de construções, o que equivale a uma média de 7,2 mil toneladas de lixo por dia.

Desde o período em que começou a funcionar, o depósito de lixo já recebeu 40 milhões de toneladas de materiais, que estão enterrados. O chorume que penetra o solo é drenado para uma lagoa mas, em períodos de chuva, volta à terra para evitar que o reservatório transborde.

Existe apenas um tanque para guardar o líquido poluente, com capacidade de 7,5 milhões de litros. No local, há mais de 300 pontos de escape do metano – gás com alto potencial de geração de energia quando reaproveitado – que, no entanto, é queimado, transformado em gás carbônico e liberado no meio ambiente.

O vai e vem de caminhões e tratores despejando e compactando o lixo impressiona pelo volume, pela rapidez e pelo descuido aparente com o trabalhador que separa o material reaproveitável dos rejeitos (restos orgânicos não aproveitáveis).

De acordo com o diretor técnico do SLU Paulo Celso dos Reis, no local acontecem, em média, dois acidentes fatais por ano. Os menos graves acontecem com mais frequência, mas são "subnotificados".

“Como não há uma relação trabalhista, não há responsabilização direta do SLU. Há uma discussão caso a caso e o trabalhador tem que buscar a Justiça para conseguir seus direitos.”

Como o terreno pertence à Terracap, mas é operado por uma empresa terceirizada contratada pelo SLU – a Valor Ambiental –, a responsabilidade sobre os catadores depende de decisão judicial.

Histórias invisíveis

Quando a caçamba despeja quilos e mais quilos de resíduos ao solo, a multidão de catadores se organiza para iniciar a separação dos materiais reaproveitáveis. De rosto e cabelos cobertos, a maioria de mulheres se posiciona ao lado da caçamba; os homens ficam mais próximos à saída do lixo e sobem no maciço assim que a montanha de rejeitos se forma.

Urubus e cachorros também se misturam ao lixo. Pouco a pouco, as sacolas dos catadores se enchem de recicláveis: garrafas, papel, papelão e plástico. O material muitas vezes é retirado sem luvas e os acidentes, como apontou o SLU, são frequentes.

Na hora da coleta, a conversa se desenrola apenas entre catadores. Risos e "causos" animam o ambiente e parecem tornar aquela atividade mais leve. No intervalo entre a chegada de um novo caminhão de lixo, o G1conversou com alguns trabalhadores do local.

Durante as entrevistas, cada rosto ganha individualidade. Nome e sobrenome passam a ser importantes, já que cada história de vida tem suas particularidades e vai muito além do papel de catador.

Ali, em meio ao lixo, a reportagem encontrou uma cabelereira, pais de família, estudantes e garimpeiros nas "horas vagas". Percebe-se também o clima de orgulho do atual trabalho como catador, sempre associado à dignidade e ao papel de cuidadores do meio ambiente.

'Do lixão eu criei meus filhos'

Jailda Teles, de 24 anos, descobriu a "fonte de renda que é o lixão" aos 16. A catadora trabalha há oito anos na Estrutural e, em entrevista ao G1, disse também que não quer trocar o local pelos galpões de reciclagem em Brasília.











Jailda Teles, 24, conta como começou a trabalhar no lixão da Estrutural, aos 16

A jovem começou a catar recicláveis "como diversão", ao lado de uma amiga também menor de idade. "A primeira vez que vim, achei logo uma cesta de alimentos e aí a gente gostou."

“Encontrava carrinho, bonecas, iogurte, ventilador, copos pratos e churrasqueira. Tudo de utilidade para casa.”

Quando veio o primeiro filho, hoje com 7 anos, a catadora deixou os estudos e trocou a "brincadeira" no depósito pela busca do sustento da família. Com a separação dos materiais, a moradora da Estrutural consegue em torno de R$ 30 a R$ 50 por dia.

“Do lixão eu criei meus filhos, e é daqui que eu tiro a renda até hoje.”

O sonho de menina, que antes se baseava em "garimpar preciosidades" em meio ao lixo, mudou. Agora, é o sonho de conseguir recursos para cuidar dos filhos e dar continuidade aos estudos. Jailda aguarda uma nova matrícula na escola e disse ao G1 que, ao concluir o ensino básico, pretende cursar medicina.

'Escravidão'

O catador de recicláveis Gilberto Alves, 57 anos, deixou o garimpo em Mato Grosso para trabalhar no Lixão da Estrutural, em Brasília. Em 1993, o trabalhador trocou o ouro e a bateia pelas chamadas bags – sacolas de reciclagem. A renda mensal conquistada no DF gira em torno de R$ 800.

A rotina no aterro vai de segunda à sábado, em torno de nove horas de trabalho por dia. A atividade envolve a separação de garrafas PET, papel e um material plástico conhecido como "seda". Com o rosto queimado de sol, roupas, mãos e sapatos sujos de lama, Gilberto conversou com o G1sobre o dia a dia em meio ao lixo. (veja vídeo abaixo)

Catador Gilberto Alves fala sobre dia a dia no Lixão da Estrutural

Ao se referir ao trabalho, o catador fala em "escravidão moderna", mas diz não querer trocar, no momento, o lixão pelos galpões cedidos pelo GDF. O motivo é o medo de reduzir os ganhos no fim do mês. "Pelo menos aqui sei que consigo pagar as contas e fazer o mercado".

“Com o fechamento vai ficar difícil, eles só pensam neles próprios e o povo que se vire. Dizem até que o Brasil é livre, mas vivemos é uma escravidão.”

Ao longo da conversa, Gilberto confessa, no entanto, que o trabalho no lixão não é seguro. Ele diz já ter presenciado acidentes, inclusive com crianças. "Aqui não tem fiscalização, entra quem quer. Mas já está terminando o lixão, nem vão ligar para isso. Não sei o que vai acontecer 'com nós'."

Gilberto Alves, 57 anos, deixou o garimpo em Mato Grosso para trabalhar no lixão da Estrutural (Foto: Marília Marques/G1)


Ao fim do dia, a roupa suja e molhada de suor dá lugar às vestes de um novo Gilberto, dessa vez o estudante de teologia. Ele concilia os papeis de pai, marido e catador com o de pregador em uma igreja evangélica de Vicente Pires.


O momento de deixar o trabalho é quando o sol se aproxima do horizonte. Aí, outros trabalhadores assumem o posto para dar início a um novo turno de trabalho, dessa vez, até a madrugada.

Atravessadores

No DF, a tonelada de lixo para reciclagem é comprada, em média, a R$ 300. Em outros estados, como São Paulo, a tonelada chega a R$ 1 mil. Os catadores da capital federal consideram o valor injusto, mas, conforme dizem, "é a lei dos mais fortes".

O valor é determinado por cerca de 30 empresas que fazem o intermédio para a revenda da coleta seletiva para a indústria da reciclagem. A mediação é feita pelos chamados atravessadores. No lixão, o G1conversou com um deles.

O jovem empresário Henrique Pereira, de 25 anos, está à frente de uma dessas empresas atravessadoras. Com a previsão de fechamento do lixão da Estrutural em janeiro do próximo ano, o empreendedor diz que a região onde o depósito está localizado "praticamente vai falecer".


Henrique Pereira, 25, atua no lixão à frente de uma empresa 'atravessadora'

“O comércio vai acabar, os catadores não vão ter a boa fonte de renda que têm hoje em dia. No meu ponto de vista será negativo.”

Fechamento do lixão

O fechamento do lixão da Estrutural é uma determinação do Tribunal de Justiça do DF desde 2007, motivada por ação do Ministério Público. O depósito é listado como o segundo maior lixão a céu aberto do mundo - atrás apenas do de Jacarta, na Indonésia.

A decisão pelo seu fechamento atende também à Política Nacional de Resíduos Sólidos. A medida, publicada em 2010, determina que aterros sanitários poderão receber somente os rejeitos, aquele material que sobra após a retirada de tudo que pode ser reaproveitado.

A partir de 2018, o local servirá como ponto de descarte apenas de entulho, segundo o GDF, até que sejam licitadas empresas para o processamento desses resíduos. No entanto, segundo o diretor do SLU Paulo dos Reis, mesmo após o encerramento das atividades, o lixo permanecerá no terreno.

“Em uma avaliação preliminar, para retirar o lixo de lá custaria, em média, R$ 600 milhões. Se o lixo fosse retirado, o terreno passaria a valer R$ 1,5 bilhão.”

Novos galpões

Os catadores que atuavam no lixão e são vinculados a cooperativas estão sendo transferidos aos galpões de reciclagem do GDF. A transição acontece desde 2015 – para espaços alugados pelo governo – à medida em que os definitivos não ficam prontos.

Segundo o GDF, ao todo, cinco galpões de triagem serão alugados para receber até 1,2 mil catadores. O investimento total previsto para a aquisição de materiais como empilhadeiras, prensas, geladeiras e bebedouros, é de R$ 1,2 milhão em 2017 e de R$ 1,5 milhão em 2018.

Dois dos locais já estão contratados, um no Setor Complementar de Indústria e Abastecimento (Scia) e outro no Setor de Indústria e Abastecimento (SIA). O previsto é que profissionais de nove cooperativas trabalhem nos galpões. Os catadores recebem uma espécie de compensação financeira temporária de R$ 360,75.

Para o governo, esta seria uma forma de "compensar os trabalhadores pela redução da demanda de resíduos em função da desativação gradual do lixão".

No entanto, para a catadora Zilma da Silva, de 53 anos, financeiramente, a troca não compensa. A moradora da Estrutural trabalhou durante 30 anos no lixão e está há quatro meses nos galpões de reciclagem.

Ao G1, Zilma disse preferir o trabalho no galpão devido à segurança e infraestrutura. "A gente trabalha na sombra, não toma sol nem chuva", mas reclama da redução de mais de R$ 1,4 mil nos rendimentos mensais.

“No lixão eu tirava R$ 2 mil por mês, e agora no galpão nem R$ 600 estou tirando.”

Ainda no lixão, a catadora trabalhava 14 horas por dia, até a madrugada do dia seguinte. A rotina, agora, foi trocada por apenas 4 horas diárias dedicadas à separação do lixo, já que o espaço de trabalho é dividido por turno, compartilhado com outras cooperativas de reciclagem.

'Chaga ambiental'
O lixão da Estrutural é considerado uma "irregularidade" pela Lei de Crimes Ambientais, de 1998, e pela Política Nacional do Meio Ambiente, de 1981. O depósito fica ao lado do Parque Nacional de Brasília, uma unidade de conservação que se estende por mais de 40 hectares.

Para o analista ambiental do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) Grahal Benatti, a proximidade entre as áreas natural e a contaminada pelo chorume gera impactos na fauna, flora e até na água que abastece a população do DF.

“Como não é um aterro sanitário, há uma contaminação que chega por baixo da terra e atinge o lençol freático e nascentes e, por isso, pode até atingir a água que a população bebe.”

Em um relatório divulgado pelo SLU, o depósito irregular de lixo é chamado de "chaga ambiental". O GDF sabe que a existência do lixão provoca impactos sobre os recursos hídricos e ameaça de contaminação os mananciais que fazem parte bacia do Lago Paranoá. Desde outubro, o sistema complementa o abastecimento de regiões que que já recebem água do Santa Maria/Torto.

Outros impactos causados ao meio ambiente, segundo Benatti, são a contaminação do ar e a concentração excessiva de urubus no local. O técnico cita, ainda, um outro fenômeno curioso: a atração de cães para o lixão. Com isso, o acesso de cachorros – anteriormente domesticados - ao interior do Parque Nacional causaria uma mudança de comportamento nos animais.

“Os cães se transformam em cachorros selvagens e se tornam competidores da fauna nativa. Em bando atacam antas, cotias e tamanduás.”

Há solução?

Em fase final de instalação, o Aterro Sanitário de Brasília, ao lado da DF-080, vai substituir o lixão da Estrutural. Projetado para comportar 8,13 milhões de toneladas de lixo, o novo depósito tem área total de 760 mil metros quadrados, dos quais 320 mil são destinados a receber os rejeitos.

Em funcionamento há quase um ano, o aterro já recebeu 214 mil toneladas de resíduos. A média diária é de 800 toneladas. Já em novembro, o terreno recebeu uma manta de impermeabilização. Com a área de 22 mil metros quadrados, a estrutura pretende evitar a contaminação do solo e do lençol freático.

Foto aérea do Aterro Sanitário de Brasília, em novembro (Foto: Gabriel Jabur/Agência Brasília)


De acordo com uma nota do GDF, a preparação do espaço será "fundamental para que sejam depositadas toneladas de resíduos não recicláveis". O acesso é restrito a catadores. Apenas motorista e carretas de lixo são autorizados a entrar. Duas balanças rodoviárias ficam instaladas perto da entrada para pesar os caminhões que chegam e saem. Para o diretor do SLU Paulo dos Reis, o local é um "sonho de consumo".

“Para quem tem um lixão funcionando há 50 anos, um aterro sanitário é um paraíso.”

Diferentemente do lixão da Estrutural, a disposição do lixo no aterro sanitário foi planejada para exigir cuidados. Ao ser colocado no solo, o rejeito será espalhado e compactado com terra diariamente. Durante a colocação do lixo no solo, dois drenos captam a água pluvial e o chorume.

Apesar de todos os cuidados, a alternativa mais eficiente, segundo ambientalistas ouvidos pelo G1, é a redução do lixo descartado pela população e pelos grandes geradores.

Desde novembro, os estabelecimentos do Distrito Federal que produzem mais de 1 mil litros de lixo por dia se tornaram responsáveis pela própria coleta. Por meio de nota, o SLU informa também que vai expandir a coleta seletiva para todo DF a partir do próximo ano.

G1 DF.