Especial do JBr. mostra que, em 5 anos, 247 grávidas buscaram programa no DF que providencia o aborto. A maioria foi vítima de abuso. Porém, mais da metade desistiu e deu à luz

Pela porta semitransparente acessada pelo pronto-socorro do Hospital Hospital Materno Infantil de Brasília (Hmib) entram milhões de histórias. No cenário intimista com poltronas confortáveis, mulheres – em sua maioria vítimas de abuso – mexem em feridas, traumas e consequências indesejadas. Há 22 anos, naquele cubículo no canto da unidade, elas se candidatam ao Programa de Interrupção Gestacional Prevista em Lei (PIGL). Nos últimos cinco anos, 247 buscaram acolhimento, e menos da metade chegou ao aborto.

No DF, o programa é a única alternativa de interrupção legal. Ali, em uma média de dez encontros, a vítima que manifesta sua decisão de interromper a gravidez passa por acolhimento, instrução, acompanhamento e avaliação. “O programa garante a ela o direito de não ser punida pelo aborto em casos previstos em lei”, explica a coordenadora do programa, a psicóloga Alessandra Arrais.

Perfil

De 2013 a 2017, 94% das mulheres que procuraram o PIGL tinham sido vítimas de estupro, 3% corriam risco de morrer e 2% foram motivadas por anencefalia fetal. As mulheres têm, em média, 24 anos, e buscam o serviço alguns dias ou semanas após a descoberta da gravidez. Muitas procuram por chás, medicamentos ou clínicas clandestinas antes de chegarem ao atendimento médico. No período, 23 menores de 14 anos foram atendidas. Nessa faixa etária há direito ao aborto mesmo que elas não tenham sido vítimas de violência.

Nem todas as mulheres aptas a descontinuarem a gravidez fazem o procedimento. Nos cinco anos, 51% das acolhidas preferiram continuar a gestação. Os dados fazem parte de um estudo elaborado pela equipe do programa, que também traçou um perfil da caracterização dos estupros das gestantes. A maioria foi abusada por um desconhecido (63%) e foi vítima no período noturno (75%) e em via pública (53%).

“O que acontece aqui não deveria acontecer. Nenhuma mulher deveria passar por isso, que é o pior do pior. Ela foi estuprada, pode ter pego uma doença e descobre que está grávida. Aqui é a prova de que tudo falhou: a segurança, porque ela foi estuprada; e a saúde, porque não tomou pílula do dia seguinte”, diz a psicóloga Elen Zerbini, há cinco anos no setor.

Trauma por toda a vida

Três anos depois, a vendedora Patrícia (nome fictício) ainda tem dificuldade de falar sobre aquela noite. Ela tinha saído do trabalho e andava em direção a uma parada de ônibus na L2 Sul quando foi surpreendida por um homem que a jogou no chão e a violentou. Doze semanas depois, ela descobriu que aquele trauma perpetuaria.


“Eu fiquei sem chão. Entendia que uma vida crescia dentro de mim, mas era como se eu fosse violentada de novo, de novo e de novo”, conta a mulher de 32 anos.

Para Patrícia, não ter a criança era a única opção. De família religiosa, ela temia o julgamento: “É difícil pensar que poderiam me humilhar por algo que também me fazia sofrer”.

Patrícia pensou em ir para a clandestinidade, mas teve medo. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a cada dois dias uma mulher morre no Brasil vítima de aborto ilegal. Ela chegou aos prantos em um posto de saúde e uma enfermeira falou do PIGL. “Recebi o amparo que ninguém pôde me dar. É sofrido, mas sinto que tomei a decisão certa”, diz.No DF, o programa de acolhimento e avalização de casos é a única alternativa de interrupção legal. Foto:João Stangherlin/Jornal de Brasília.

Como funciona o processo

As portas do Programa de Interrupção Gestacional Prevista em Lei (PIGL) ficam abertas de segunda a sexta-feira, em horário comercial. Tudo é absolutamente sigiloso. Para ter direito a um leito, não é necessário boletim de ocorrência ou decisão judicial. Se comprovado que o bebê é fruto de violência, a mulher tem três opções: interromper a gestação, mantê-la e entregar a criança para adoção, ou ficar com ela. No entanto, para chegar ao fim do processo, é necessário atendimento multidisciplinar. Nada é imediato.

“A gente não julga, questiona ou duvida do estupro. Se a pessoa conta que sofreu a violência é porque sofreu, mas nem sempre a gestação é fruto disso”, diz Alessandra Arrais, coordenadora do programa.

Para descobrir o que de fato ocorreu, são consideradas desde datas até a definição legal de abuso sexual. O protocolo é de um acolhimento, três atendimentos psicológicos, um atendimento social e um atendimento médico que inclui pedidos de exames. No final, a equipe se reúne e dá o parecer final.

Decisão consciente

Se decidir interromper a gravidez, a paciente tem que assinar uma série de documentos e nada acontece até ter segurança de que a decisão é consciente, sem impulso ou por pressão.

Pela lei, o aborto pode acontecer em até 22 semanas de gravidez (cinco meses), período em que não há chances de sobrevivência do feto. Até 12 semanas, usa-se o método de aspiração a vácuo intrauterina, considerada segura, rápida e eficiente. Depois disso, é feita a indução de parto.

Se a intenção é ficar com o bebê, o programa faz um pré-natal psicológico que só existe ali. Caso a mulher queira encaminhar a criança para adoção, existe todo um processo e, no parto, ela sequer vê o recém-nascido ou o amamenta. Em todos os casos, as mulheres podem ser acompanhadas posteriormente. Situações de gravidez indesejada são encaminhadas ao serviço social.Equipe multidisciplinar acompanha as grávidas que procuram programa em busca do aborto. Foto:João Stangherlin/Jornal de Brasília.

Objeção de consciência

No Distrito Federal, apenas uma equipe completa faz parte do programa. Em casos de licenças ou férias, resta a lacuna. Isso porque existe dificuldade de conseguir servidores para trabalhar diante do público delicado.

“Não adotamos postura pró ou contra o aborto, não colocamos posições pessoais, não fazemos ativismo ou juízo de valor. A gente tem que ser isento para avaliar os casos. Você não pode deixar de ajudar uma pessoa que precisa fazer o procedimento”, resume Alessandra Arrais.

Evidências do crime

Depois de ser abusada, Patrícia foi para casa, tomou banho e se desfez das roupas. A atitude, segundo a equipe do programa, é tradicional. “Vítimas costumam tentar esquecer que aquilo aconteceu. É ruim porque acaba com vestígios. Violência sexual não é apenas coisa de polícia. É também questão de saúde. Qualquer pronto-socorro é capacitado a atender e ministrar os cuidados necessários para evitar a gestação e doenças”, aponta Alessandra Arrais.

Apesar de não ser obrigatório, o registro de boletim de ocorrência é estimulado. “A vítima carrega a prova de quem é o agressor. Se ela interrompe, o material biológico que sai não pode ser desprezado porque é prova de crime. Isso fica guardado é encaminhado à Polícia Civil para fazer parte do inquérito. Dali, é possível tirar o DNA do agressor”. O estupro pode ser registrado até cinco anos após o crime. Das mulheres acolhidas, apenas 33% haviam feito a denúncia.Nos casos previstos em lei, opção pelo aborto é da gestante. Foto:João Stangherlin/Jornal de Brasília.

Ponto de Vista

Ginecologista e integrante do Conselho Regional de Medicina (CRM), Antonio Cesar Barbosa esclarece que, conforme o código de ética da profissão, o médico só pode se recusar a fazer um procedimento se não for emergência. Nos demais casos, é preciso justificar no prontuário e providenciar atendimento. É a chamada objeção de consciência.

Saiba Mais

Existem apenas 37 serviços de referência para o aborto legal em funcionamento em todo o País.

Em sete unidades da Federação, não há nenhum serviço semelhante ativo.

Pelo Sistema Único de Saúde (SUS), 1.680 abortos legais foram realizados em 2016 no Brasil.
Em 2017, foram 1.636 casos.
Fonte: Jornal de Brasilia
Foto:João Stangherlin/Jornal de BRasília.