Foto: Rayra Paiva Franco/Jornal de Brasília

Neste ano, já há mais de 200 ocorrências por injúria racial. Caso mais recente foi em mercado.

“O racismo ocorre toda vez que vou ao banco e a porta sempre para quando vou passar. Ela não tem detector de metal, tem detector de melanina”. O relato indignado é do contador Kim Fortunato, de 28 anos. Ele cresceu e soube se blindar dos comentários preconceituosos por conta da cor de sua pele, mas defende que é preciso haver mudanças culturais para cessar o racismo. Assim como ele, negras e negros são ofendidos diariamente. Só neste ano, 211 boletins de ocorrência de injúria racial foram registrados no Distrito Federal.

O último caso divulgado foi de uma funcionária de supermercado na 402 Sul, que foi xingada de “negra incompetente” por um cliente de 55 anos. O crime ocorreu por volta da 1h30 dessa quinta-feira (13). Outros clientes testemunharam o ataque racista e acionaram a Polícia Militar. O homem foi levado à 1ª Delegacia de Polícia (Asa Sul). Ele prestou depoimento, assinou apenas um termo de compromisso e foi liberado. A ocorrência foi registrada como injúria racial.

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A falta de punição efetiva por conta da tipificação do delito é a principal crítica do contador Kim Fortunato. “Além de desmerecer a nossa luta, essa é só uma forma preguiçosa de o Estado combater, porque quando é racismo é inafiançável, tem que ser punido, já quando é injúria só precisa assinar o termo e vai embora”, reclama.

Apesar da desesperança, o homem não se contentou com o pouco quando tomou a iniciativa de registrar um boletim de ocorrência. Há três anos, ele passou por uma situação constrangedora em um banco. “Fui fazer um depósito de uma grande quantia. Estava na fila e reparei que tinha um homem atrás de mim, mas não o conhecia. Assim que a funcionária foi me atender, disse que não faria o depósito e que eu teria que chamar meu chefe. Não entendi”, lembra.

“Perguntei a ela quem era meu chefe e ela apontou para o homem que estava atrás de mim. Ela o chamou e perguntou se me conhecia, e ele disse que não, claro. Foi uma confusão no banco. A sorte é que todas as câmeras gravaram. Fui à delegacia e o delegado tipificou como injúria racial, mesmo eu questionando. Depois, entrei com uma ação de danos morais e ganhei”, completa Kim.

O episódio marcou o contador. “Até quando pretos vão sofrer por conta dos brancos?”, questiona. “Não é ‘mimimi’. Só sabe o que é racismo quem é negro. Acontece muito comigo quando entro no meu carro, coloco meu boné aba reta e ligo o som para ouvir rap. Parece que eu viro a própria imagem do que é mal na cidade, do que é bandidagem”, acrescenta.

Kim é pai de duas crianças: uma menina de cinco anos e um menino de oito. Para ele, o mundo ideal para os filhos seria um mundo com mais respeito.Enquanto o Brasil não admitir que é um país racista, isso não vai mudar, diz Kim Fortunato. Foto: Rayra Paiva Franco/Jornal de Brasília

Relatos repugnantes documentados

O Ministério Público do DF e Território tem setor específico para receber e encaminhar denúncias de preconceito racial. No ano passado, o Núcleo de Enfrentamento à Discriminação (NED) encaminhou 46 denúncias à Justiça, sendo que em 2016 foram 129. Neste ano, até o momento, são 63 denúncias.

Em uma das denúncias deste ano, a vítima foi xingada de macaco. O autor das agressões havia estacionado de maneira incorreta e a vítima pediu para que ele estacionasse em local apropriado. O agressor, então, começou disparar comentários racistas: “Seu preto filho da p*, eu que pago seu salário, seu vagabundo”… “Você só fica sentado comendo às minhas custas”, “vocês são um bando de macacos”.

Outra agressão ocorreu em uma academia. A funcionária foi discriminada por conta de sua cor. O acusado dizia: “Eu queria que voltasse o tempo da escravidão e todos vocês fossem negros para que eu pudesse dar chibatadas, e assim as coisas seriam do meu jeito”.

Números estão abaixo da realidade

Os 211 boletins de injúria racial registrados só no primeiro semestre deste ano representam um aumento sutil de 3,4% se comparado com o ano passado, quando houve 204 no mesmo período.

Para caracterizar racismo, é necessário que a ofensa seja dirigida a um grupo ou coletividade. Já a injúria racial é individualizada. A pena para ambos vai de um a três anos, mas na injúria cabe fiança.

Apesar dos números, Érica Macedo, delegada-adjunta da Delegacia Especial de Repressão aos Crimes por Discriminação Racial, Religiosa ou por Orientação Sexual ou contra a Pessoa Idosa ou com Deficiência (Decrin), acredita em subnotificação. “Houve aumento no número de denúncias com o passar dos anos, mas as pessoas ainda são tímidas. É importante lembrar que é crime para que a pessoa se sinta encorajada a denunciar”, diz.

Para Érica, muitas vezes as vítimas desacreditam da eficácia da denúncia. “Pensam que a pena será branda, que não dá em nada. O racismo ainda faz parte da cultura. Às vezes a vítima é discriminada e nem se dá conta”, pondera.

Na avaliação da delegada, a discriminação não vem acompanhada de fatores sociais. “Independe de classe econômica, lugar onde mora, idade, nível de escolaridade. Temos denúncias em todo o DF, de todos os tipos de pessoas”, indica.

Ponto de Vista

Educação e punição. Para mudar a sociedade e diminuir o racismo no País, a pesquisadora do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da UnB, Marjorie Chaves, acredita que é preciso a união das duas coisas. “A penalização mostra que é crime e que as pessoas que o cometem têm de ser responsabilizadas. A mudança que precisamos é estrutural. Temos que discutir abertamente e entender que a questão diz respeito a toda a sociedade, e não só aos negros”. Para ela, há uma brecha na legislação na hora de tipificar os crimes. “No Brasil, não há a prática da condenação do racismo. Isso leva à certeza da impunidade. Muitas vezes, os autores perpetuam as atitudes e nem se arrependem. As vítimas também acabam desestimuladas, mas eu continuo achando que se deve denunciar. Se não é cumprido como está na lei, ao menos externaliza e expõe a pessoa”, conclui.

Serviço

Como denunciar

O registro de crimes de racismo e injúria racial pode ser feito em qualquer delegacia de área ou na Delegacia Especial de Repressão aos Crimes por Discriminação Racial, Religiosa ou por Orientação Sexual ou contra a Pessoa Idosa ou com Deficiência (Decrin).

A Decrin funciona de segunda a sexta, das 12h às 19h, e fica no Departamento de Polícia Especializada (na altura do Sudoeste). Outro serviço disponível é o da Delegacia Eletrônica, no site www.pcdf.df.gov.br.

Fonte: Jornal de Brasília